O mercado brasileiro de caminhões enfrenta um movimento que lembra a primeira onda chinesa no setor de automóveis — mas com outra escala, outra velocidade e uma maturidade tecnológica impossível de ignorar. Fabricantes como Sany, JAC Motors e Foton avançam com planos industriais, ampliação de portfólios e – no caso da Sany e Foton – aposta em eletrificação, o que abre uma disputa que pode redesenhar o transporte de carga no país.
Esse avanço ocorre em meio a uma reorganização global da indústria, marcada por custo, escala e necessidade de novos mercados. Em entrevista ao portal Transporte Moderno, o coordenador de cursos automotivos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Antonio Jorge Martins, disse que o movimento das chinesas obedece a uma lógica clara: “elas chegam porque têm escala, tecnologia e urgência em expandir”.
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A escala explica parte da ofensiva. A Foton, sozinha, produz cerca de 600 mil caminhões por ano na China — seis vezes todo o mercado brasileiro. Essa capacidade industrial reduz custos unitários e abre espaço para agressividade comercial.
A JAC Motors, que entra em nova fase, retorna ao Brasil com operação própria focada em caminhões a diesel, enquanto o braço dedicado a elétricos permanece sob gestão do empresário Sérgio Habib. O plano inclui instalar uma fábrica CKD ou SKD até 2027 e ampliar a rede para cerca de 60 concessionárias em menos de três anos.
Já a Foton encerra 2025 com seu melhor desempenho histórico no país, acelera a montagem local em Caxias do Sul (RS) e inicia uma expansão que elevará sua capacidade produtiva para 14 unidades por dia até o fim de 2026. Com apoio logístico da Cosco, uma das maiores operadoras marítimas do mundo, a marca prepara o Brasil para deixar de ser apenas mercado consumidor e se transformar em hub industrial e logístico para a América Latina.
China em 2035, Brasil em 2025
A chegada dos elétricos chineses expõe uma defasagem tecnológica cada vez mais evidente. Para Clemente Gauer, integrante da coalizão Gigantes Elétricos e diretor da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), “o país vive o mesmo choque tecnológico dos automóveis, mas com impacto operacional muito mais profundo.”
Segundo ele, a eletrificação dos caminhões já não é tendência, mas padrão global. “Na China, um frotista médio opera com software nativo de fábrica, baterias de alta densidade e recarga ultrarrápida. Isso muda tudo — custo por quilômetro, disponibilidade, manutenção e vida útil”, afirma.
A assimetria se agrava porque o Brasil enfrenta três gargalos estruturais. O primeiro é a infraestrutura de recarga, praticamente inexistente para aplicações pesadas. “Os fabricantes chineses projetam caminhões para redes de 350 kW a 1 MW. Aqui, a maioria das transportadoras nem tem subestação compatível”, explica Gauer. Por isso, as novas marcas já avançam em pacotes completos que incluem caminhão, carregador e infraestrutura.
O segundo gargalo é tributário. De acordo com ele, a falta de convergência entre estados para taxar componentes, baterias e carregadores cria assimetrias e desestimula investimentos. O terceiro é cultural: grande parte dos frotistas ainda não compreende o TCO — o custo total de propriedade. “O elétrico pesado só parece caro. Operacionalmente, ele é mais barato”, afirma. A consultoria calcula que o custo por km dos elétricos chineses já rivaliza com o diesel em operações urbanas, mineração leve e rotas fixas.
O precedente BYD e o risco de repetição no setor de caminhões
O paralelo com o mercado de automóveis — onde a presença chinesa é crescente — é inevitável. Para Antonio Martins, a resposta é clara: o fenômeno deve se repetir, mas com efeitos maiores. “Os automóveis foram a vitrine, mas os caminhões serão o campo de batalha real. A China domina a eletrificação pesada; tem escala, tecnologia e preços que o Ocidente não acompanha”, afirma.
Gauer concorda. “Se o Brasil abrir o mercado e garantir infraestrutura mínima, veremos o mesmo fenômeno dos carros — só que maior. Caminhão afeta logística, frete, custo de produção e inflação.”
Por que o Brasil virou prioridade agora?
A ofensiva chinesa ocorre pela junção de fatores estratégicos. O mercado europeu desacelera e a produção chinesa cresce mais rápido do que o mundo consegue absorver. Por outro lado, a eletrificação pesada avança, e o Ocidente não reage no mesmo ritmo. O Brasil, por sua vez, tem demanda estrutural por caminhões pesados e extrapesados.
Além disso, programas como o Mover e regras de conteúdo local começam a atrair planos industriais. Segundo o professor da FGV, o país deixa de ser “potencial” e passa a integrar a estratégia global de veículos comerciais chineses.
2026: o ano do confronto aberto
Se 2025 marca a chegada e a estruturação, 2026 será o ano da disputa direta entre as chinesas e as marcas tradicionais. A Fenatran, maior feira de transporte de cargas da América Latina — que em 2024 recebeu mais de 50 representantes de empresas chinesas — deve ser o palco da consolidação desse movimento das montadoras.
“Estamos entrando em uma nova era do transporte no Brasil”, resume Gauer. “Quem entendeu isso está se preparando. Quem não entendeu vai ficar para trás.”
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