Quando Jackeline da Silva Sales entrou pela primeira vez na cabine de uma locomotiva, entendeu que estava cruzando um limite histórico — o dela e o da ferrovia. “Foi um misto de ansiedade, felicidade e conquista. Era um sonho sendo realizado. A sensação foi igual à de uma criança que ganha o presente que mais deseja”, conta a maquinista ao portal Transporte Moderno, hoje uma das novas caras de uma mudança silenciosa nas ferrovias brasileiras.
Filha, mãe e recém-formada na operação de locomotivas, Jackeline lembra que um dos maiores desafios foi aprender a mecânica do equipamento, algo distante da realidade de muitas mulheres. “Homens têm mais contato com isso desde pequenos. Para mim, foi difícil no começo, mas venci.” A barreira cultural também apareceu. “Às vezes a gente escuta: ‘Nossa, mas é mulher’. Às vezes é admiração, às vezes não. Sempre tem quem questione se damos conta. Mas eu sei lidar.”
Se a trajetória individual ainda carrega obstáculos, ela também simboliza um movimento mais amplo. Em um setor historicamente masculino, as ferrovias vivem um avanço consistente da presença feminina na operação — especialmente na cabine. Empresas passaram a adotar programas estruturados de atração, capacitação e mudanças de infraestrutura que vêm abrindo espaço para profissionais como Jackeline.
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Contratação e adaptação
Na Rumo, operadora ferroviária controlada pela Cosan, a transformação ganhou força nos últimos dois anos. Em 2022, a empresa tinha apenas duas maquinistas. Hoje são 45 — cerca de 5% de um quadro de mais de mil profissionais. O salto, ainda que inicial, tem peso estratégico.
“Trazer mulheres não é só uma pauta social, mas uma agenda de negócio”, afirma Aline Frazilli, gerente de capacitação técnica da Rumo. “Equipes diversas ampliam performance e ajudam a mitigar a falta de mão de obra, que hoje é uma das maiores dores do setor.”
Para viabilizar a presença feminina, a empresa readequou vestiários, banheiros e áreas de convivência, treinou lideranças para eliminar vieses e revisou a formação técnica. O programa inicial exigia 15 dias de treinamento fora da cidade, inviável para muitas mulheres com filhos. A flexibilização foi decisiva para casos como o de Jackeline. “Se eu tivesse que ficar 15 dias longe, eu não estaria aqui hoje”, afirma a maquinista.
Benefícios como licença-maternidade ampliada, auxílio materno-infantil e bolsa maternidade ajudaram a consolidar o movimento. A percepção interna é que a entrada de mulheres já trouxe efeitos operacionais, como maior cuidado na condução e redução de desgaste de equipamentos.
VLI avança rápido e já soma 102 mulheres na cabine
A VLI segue a mesma trilha, em ritmo acelerado. A operadora dos corredores Norte-Sul, Centro-Sudeste e Minas-Rio conta hoje com 1.600 mulheres em seu quadro, das quais 662 atuam na operação e 102 são maquinistas. Em 2022, esse número era de apenas 32. “Estamos falando de uma evolução contínua, não de bater números”, diz Maria Alice Gregório, executiva da companhia. “Mas é inegável: onde tem mulher, a operação melhora.”

A empresa mantém vagas exclusivas para mulheres em áreas operacionais, banco permanente de candidatas e um programa robusto de formação técnica. A Mentoria Feminina, criada em 2019, já apoiou 107 colaboradoras, e a VLI investe em trilhas de aceleração de carreira voltadas a mulheres com potencial de liderança.
O avanço também exigiu mudanças físicas e culturais. O Plano do Respeito, com investimento de R$ 15 milhões em 2025, reestruturou vestiários, banheiros, áreas de convivência e criou salas de aleitamento. O canal de denúncias passou a contar com atendimento exclusivo para mulheres, conduzido por especialistas.
Benefícios como licença-maternidade ampliada, o programa Gestar e o Guia da Gestante reduziram o turnover feminino. Hoje, 27% dos cargos de alta liderança já são ocupados por mulheres — quase o dobro de 2020.
Uma mudança irreversível
A presença feminina vem produzindo impactos mensuráveis em segurança, qualidade operacional e clima organizacional. Para as empresas, ampliar a participação de mulheres é uma forma de enfrentar a escassez de maquinistas e sustentar o crescimento da malha ferroviária.
Para profissionais como Jackeline, significa ocupar um espaço historicamente fechado. “A ferrovia sempre foi deles. Agora tem nosso espaço também. Eu amo estar na locomotiva. E quando encontro outra mulher no trecho, sinto que faço parte de algo maior”. A locomotiva que Jackeline conduz, agora, carrega mais do que carga: carrega uma mudança que já não volta atrás.
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